O papel do software numa sociedade capitalista informatizada
Na economia do século 20, da qual estamos saindo, o bem de produção
primário e fundamental para o desenvolvimento era o aço. Sociedades se
mediam pelo sucesso em produzi-lo. Mas a economia do século 21 não é
sustentada pelo aço. A economia do século 21 é sustentada por software.
Software é elemento tão fundamental para o desenvolvimento econômico no
século 21 quanto foi o aço na do século 20. A organização da
sociedade nos países desenvolvidos mudou, e continuará mudando nos
países em desenvolvimento, rumo a economias cujo produto primário
fundamental é o software. Basta ver como operam hoje as instituições
financeiras, as bolsas de valores e os Bancos Centrais.
A boa notícia é que ninguém precisa possui-lo: software é bem simbólico
cujo valor de uso, ao contrário dos bens materiais, aumenta com a sua
abundância e disseminação. Software pode ser produzido de forma
incremental e colaborativa, sem necessidade de se reinventar a roda.
Pode servir ao homem como extensão de sua inteligência, sem necessidade
de que esteja para isso preso em gaiolas virtuais de incompatibilidade
digital, arejadas pela cobrança de pedágios.
A má notícia é que essas mesmas características do software tornam os
mercados de informática naturalmente monopolizantes. Capazes de
transformar esse poder libertador em atraentes arapucas manipuláveis por
fornecedores. Assim, os concentradores financeiros, que numa sociedade
capitalista controlam indiretamente os meios de produção de bens
essenciais, vêem como necessário, para a manutenção desse controle numa
sociedade informatizada, extender o conceito jurídico de propriedade
para bens simbólicos. Para que os bens simbólicos sirvam ao propósito
maior de seus investimentos, que é o de concentrar mais riqueza aos
investidores.
Daí a radicalização que observamos, por exemplo, em âmbito global no
regime jurídico das patentes. Essa radicalização é explorada pela
incerteza que surge quando se pretende erguer cercas em torno de idéias,
e pela miragem que vê uma sociedade melhor onde houver maior
concentração de riqueza. Essa radicalização atinge não só a produção e
comércio em torno de software, que é um bem dos mais puramente
simbólicos, mas também outros mercados onde o saber e a técnica agregam
valor, como o da produção e uso agrícola de sementes geneticamente
modificadas, o da produção de medicamentos, de bens culturais, etc.
Por outro lado observa-se, no topo desta pirâmide de valores simbólicos,
que modelos colaborativos de produção, licenciamento e negócio
alternativos aos ditados pela lógica monopolista, coletivamente
denominados FOSS (free /open source software), já provaram sua
viabilidade e eficiência, onde houver massa crítica, na crista da onda
tecnológica, que é a informática. Da mesma forma que a agricultura
tradicional, que trata o conhecimento sobre sementes como bem cultural,
os modelos FOSS tratam software como verdadeiro bem simbólico, como
conhecimento lógico que se expressa em linguagem de computadores, e não
como bem material, como sabonete que se vende em caixinha e se desgasta
com o uso.
Assim como a agricultura tradicional, o FOSS pode sustentar um
ecossistema socioeconômico controlado por necessidades autônomas do
homem, às quais a lógica do lucro máximo se subordina. Diante da
perspectiva de mudanças no topo da pirâmide de valores simbólicos, na
correlação de forças entre quem detém capital e quem detém conhecimento
conversíveis em instrumentos de autonomia ou de controle das práticas
sociais, configura-se, no centro do processo de globalização, um
confronto ideológico em torno do conceito de propriedade, inflacionado
na esfera dos bens simbólicos.
Nessa palestra, buscaremos descortinar o panorama desse confronto, e as
possíveis conseqüências do seu desfecho, em vistas do que está em jogo
Pedro Antonio Dourado de Rezende
ATC to Phd em Matemática Aplicada pela University of California at
Berkeley. Bacharel, Mestre e Doutorando em Matemática pela Universidade
de Brasília (UNB). Professor no Departamento de Ciência da Computação da
UnB? , onde leciona teoria da computação, teoria dos grafos, linguagens
formais, linguagens de programação, análise de algoritmos, compiladores,
organização e arquitetura de computadores, criptografia e segurança de
dados, informática e sociedade, entre outras.
No vale do silício, trabalhou com controle de qualidade na Apple
Computer, e com as primeiras aplicações em hipertexto (hypercards), em
1988. Publicou no Brasil, no exterior e na web, mais de uma centena de
artigos e ensaios sobre a revolução digital, software livre,
criptografia, segurança na informática, evolução de programas maléficos,
paradigmas computacionais e epistemologia da ciência. Assinou a coluna
"Segurança, Bits & Cia" no Jornal do Commercio de 2002 a 2003.
Consultor para criptografia e segurança na informática a empresas,
órgãos públicos, legisladores, operadores do Direito e agências de
fomento à pesquisa científica. Coordenador do Programa de Extensão em
Criptografia e Segurança Computacional da UNB, onde montou e ministra o
primeiro curso de programação para Infraestrutura de Chaves Públicas
(ICP) no Brasil. Conselheiro do Instituto Brasileiro de Política e
Direito na Informática, da Free Software Foundation Latin America, e
representante da sociedade civil, por designação do presidente da
República, no Comitê Gestor da ICP-BR de 2003 a 2006.