O Agir Moral numa Sociedade Pós-convencional

  

Clodomiro José Bannwart Júnior(*)

(*) Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e aluno do Programa de Pós-graduação em nível de Doutorado da Universidade Estadual de Campinas. E-mail para contato: cbannwart@pop.com.br

Resumo:

Procura-se analisar como Habermas empreende a reconstrução do sistema de regras da interação à luz das teorias genéticas, com atenção especial, à psicologia do desenvolvimento de Piaget e Kohlberg. O ponto norteador desse empreendimento consta basicamente do desdobramento da estrutura de interação contemplada nos níveis pré-convencional, convencional e pós-convencional, conduzida pela lógica do desenvolvimento. O objetivo é mostrar, com base nessa reconstrução, as condições pelas quais o indivíduo pode agir e julgar moralmente no nível pós-convencional.

Palavras-chave:  moral, consciência moral, pós-convencional, Kohlberg.

            As sociedades contemporâneas desenvolveram, principalmente em épocas mais recentes, tendências fortemente universalistas que envolvem não só fenômenos  como a globalização da economia, da comunicação em tempo real, das tecnologias de ponta, do tratamento internacional dos direitos humanos e da questão ambiental, mas também problemas que colocam em risco a própria sobrevivência planetária, os quais exigem em nível global, esforços conjuntos de reflexão. Entre esses problemas sobressaem a bomba atômica, a manipulação genética, o armamentismo, a destruição dos ecossistemas, entre outros.

            Na leitura do Habermas, esses fenômenos são resultados da racionalização (modernização) que sofreram as sociedades ocidentais. Tais fenômenos aceleram a destruição dos vínculos tradicionais do agir, o que gerou diversas transformações no modo de operacionalização dos padrões normativos de grupos e comunidades.

            Esse universalismo de caráter eminentemente tecnológico e norteador de tendências globalizantes no campo da comunicação, do mercado e das trocas, contrasta sobremaneira as esferas particularistas das nações, das culturas, das etnias e dos mais variados fundamentalismos. Na oscilação entre universalismo e particularismos, percebe-se um déficit normativo, o que exige da ética, reflexões e análises que forneçam parâmetros teóricos para conceber e, se possível, conciliar o universalismo tecnológico, produto das sociedades altamente industrializadas, com o normativismo incrustado nas mais diversas matizes de particularismos e valores. A resposta de Habermas para essa questão é incisiva e aponta para um único recurso capaz de acompanhar o universalismo tecnológico: o universalismo normativo.(HABERMAS, 1995, p. 5-7)

            Com base nessas informações iniciais e no pensamento de Jürgen Habermas, a nossa reflexão parte do caráter cada vez mais geral e abstrato que ocupam as estruturas normativas das sociedades modernas, decorrentes do processo de racionalização do mundo da vida, visando ressaltar algumas questões que nos permitam ponderar até que ponto é possível estabelecer uma moral universalista e abstrata no âmbito pós-convencional das sociedades modernas.

            Nós nos ocuparemos mais diretamente da ordem ontogenética, procurando explicitar como o indivíduo assimila, no âmbito de sua competência interativa, a possibilidade de agir segundo os parâmetros de uma ética universalista, verificando ao mesmo tempo o esforço de Habermas para incorporar os resultados da ontogênese ao plano da filogênese. Pois é destacada, em sua teoria da evolução social, a idéia de que as sociedades passam por etapas de reflexão desde as sociedades primitivas até atingir a modernidade. Sua intenção é mostrar que há homologias entre essas etapas de reflexão das sociedades e as fases de aprendizagem individual, seja no âmbito cognitivo seja no moral, conforme é apresentado pela psicologia do desenvolvimento.

            Importa para o nosso propósito, em específico, analisar a reconstrução que Habermas faz do sistema de interação à luz da psicologia do desenvolvimento de Piaget e Kohlberg. O ponto norteador dessa reconstrução constará basicamente (i) do desdobramento da estrutura de interação contemplada nos níveis pré-convencional, convencional e pós-convencional conduzida por uma lógica do desenvolvimento; (ii) da possibilidade de fundamentar teoricamente a lógica do desenvolvimento de Kohlberg e (iii) da comprovação de que esse processo evolutivo permite ao indivíduo, de fato, atingir por processos internos de descentração, o nível pós-convencional do julgamento moral.

            O apoio que Habermas busca na psicologia do desenvolvimento de Piaget e Kohlberg tem como intuito valer-se de elementos que lhe permitem refletir como é possível o indivíduo adquirir sua competência interativa, e com ela o conseqüente desdobramento da ação comunicativa e a consolidação dos níveis de consciência moral cada vez mais abstratos.

            A pretensão de Habermas visa a reconstrução das estruturas gerais que caracterizam as propriedades formais, tanto da capacidade de ação (capacidade que tem o sujeito de agir) dos sujeitos socializados, quanto dos sistemas de ações (ordenamentos de operacionalização de ação). Considerando especificamente essa linha de raciocínio, sua intenção é perseguir a análise das estruturas dos níveis evolutivos no tocante às capacidades de ação e aos sistemas de interação, o que sinaliza o seu propósito de traçar a relação entre ontogênese e filogênese.

            Com base na “consciência moral” – que, em outras palavras, quer dizer, a percepção que o sujeito tem da regra social enquanto reguladora das ações do grupo – Habermas procura indicar o desdobramento e uso da competência interativa, tanto na elaboração quanto na solução consciente “de conflitos de ações realmente relevantes”. Os sujeitos dotados de competência interativa têm o compromisso de assumir, para dirimir eventuais conflitos, um ponto de vista capaz de efetivar o consenso, “porém somente poderão se encontrar unidos em torno desse ponto de vista fundamental, se tal ponto de vista resultar das estruturas de interação possíveis”. Nessas estruturas de interação está pressuposta a reciprocidade entre os sujeitos, pois, para Habermas, “a  reciprocidade  não é uma norma, mas ao contrário, insere-se nas estruturas gerais da interação possível”. (HABERMAS, 1990, p. 67) A reciprocidade é, portanto, requisito fundamental para um verdadeiro diálogo e será o fio condutor para Habermas analisar os três níveis de desenvolvimento da consciência moral, tratados por Kohlberg: pré-convencional, convencional e pós-convencional.

            Ao assumir que a sucessão dos estágios da consciência moral representa teoricamente uma conexão estruturada pela lógica do desenvolvimento, Habermas sinaliza o itinerário a ser preenchido. Primeiro, faz menção às estruturas do agir comunicativo que, introduzidas de acordo com o aprendizado da criança, serve de elemento indispensável para que se percebam os conflitos morais; em segundo lugar, trata da aquisição das competências cognitivas que possibilitam a realização de interações  as quais, inicialmente incompletas, possam completar-se no processo de desenvolvimento; e por fim, assinala as condições comunicacionais que viabilizam a passagem do agir comunicativo para o estágio do Discurso.

            A tarefa de Habermas, que aqui se apresenta, não é outra senão provar que a sucessão dos estágios de consciência moral representa uma conexão fundada sobre uma lógica do desenvolvimento, requerendo para isto um esforço que vai além do próprio Kohlberg, que não foi, segundo ele, capaz de fornecer uma elaboração teórica de fundamentação para as suas articulações do juízo moral, desenvolvida empiricamente.

            Segundo Habermas, o entrelaçamento da ética do discurso com a teoria do desenvolvimento da consciência moral de Kohlberg tem o propósito de assegurar a reconstrução vertical dos estágios de desenvolvimento do juízo moral, pois a teoria do desenvolvimento de Kohlberg possui fundamentos filosóficos implícitos, os quais também constituem pressupostos centrais da ética do discurso, como o cognitivismo, o universalismo e o formalismo.

            Na linha do estruturalismo genético de Piaget, a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg se pauta por vias de desenvolvimento universal, pressupondo a validade das mesmas suposições básicas da ética do discurso. Portanto, uma vez que os resultados da teoria psicológica são confirmados empiricamente, a ética discursiva não permanece independente da confirmação obtida. Habermas demonstra a esse respeito que “a verificação empírica das suposições da psicologia do desenvolvimento” é transferida para a teoria da ética discursiva, da qual foram derivadas as hipóteses confirmadas.(HABERMAS, 1989, p. 144)

Em 1958, Kohlberg introduz uma escala de seis estágios que compreendem a seguinte ordem: (i) orientação para a punição e a obediência, (ii) orientação ingênua e egoísta, (iii) orientação para o ideal do bom menino, (iv) orientação para a preservação da autoridade e da ordem social, (v) orientação legalista-contratual e (vi) orientação por princípios. Em 1976, subdividirá os seis estágios em três níveis, a saber: pré-convencional, convencional e pós-convencional.

            No desenvolvimento desses níveis, a passagem de um estágio a outro é compreendida como um processo de aprendizagem. Baseado nessa assertiva, Kohlberg apóia-se em três hipóteses para tratar o desenvolvimento da capacidade moral de julgar: (i) os estágios do juízo moral formam uma seqüência de estruturas que não são variantes nem reversíveis, porém, consecutivas, (ii) os estágios do juízo moral formam uma hierarquia, e (iii) os estágios do juízo moral são caracterizados como um todo estruturado. É justamente esta seqüência hierarquicamente ordenada de estruturas que Kohlberg e Piaget denominam de “lógica do desenvolvimento”.

            A questão que se impõe é demonstrar que a lógica do desenvolvimento, conceito capital para a psicologia do desenvolvimento e, nesse caso, igualmente para a reflexão habermasiana, não pode simplesmente circunscrever-se a uma hipótese ou mera afirmação, mas necessita de justificação. Habermas deixa entender que a justificação dos estágios morais, sob a forma de uma lógica do desenvolvimento, é tarefa a ser realizada mediante análise conceitual (reconstrução racional), porém sinalizando de antemão que todas as suposições levantadas a esse respeito somente se tornarão plausíveis, se apoiadas em investigações empíricas. O que Habermas deixa entender é que a justificativa da lógica do desenvolvimento passa pela ciência reconstrutiva, ou seja, demanda uma reconstrução racional de seus pressupostos, fazendo, ao mesmo tempo, que essa reconstrução se submeta a testes empíricos.

            Kohlberg, dentro de sua linha argumentativa, tenta dar conta da justificação da lógica do desenvolvimento a partir da correlação com as perspectivas sócio-morais. Ao empreender essa tarefa, Kohlberg está buscando alcançar simultaneamente dois objetivos: (i) fundamentar a lógica do desenvolvimento e (ii) passar da ontogênese para a filogênese, ou seja, tentar relacionar os estágios da consciência moral com as perspectivas sócio-morais.

            Segundo Habermas, a tentativa de Kohlberg para justificar a lógica do desenvolvimento por esse intermédio apresenta um problema: as perspectivas sócio-morais (nível de correlação dos estágios morais com a perspectiva social) não possuem uma nitidez analítica para as condições sócio-cognitvas dos juízos morais (capacidade cognitiva de o sujeito julgar moralmente). Seguindo a linha argumentativa de Kohlberg, seria preciso enveredar por uma analise do desenvolvimento cognitivo, procurando avaliar como se relacionam o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento interativo, o que levaria a uma análise apenas de âmbito ontogenético sem permitir a passagem para o âmbito filogenético. Habermas, ao contrário, opta pelo caminho da análise da lógica do desenvolvimento à luz da própria estrutura de interação. Seu objetivo será fundamentar a lógica do desenvolvimento dos estágios da consciência moral, reduzindo as perspectivas sócio-morais a estágios de interação.

Para isto Habermas vai utilizar-se das perspectivas sociais de Kohlberg apenas como fio condutor para reconduzir os estágios do juízo moral a estágios de interação. E a chave de explicação para a fundamentação desses estágios do ponto de vista da lógica do desenvolvimento será encontrado na complexa estrutura de perspectivas de Selman.

O propósito de recorrer ao desenvolvimento das estruturas de interação, justifica-se pelo fato de as mesmas serem tomadas como ponto de referência para esclarecer a ontogênese das perspectivas do falante e da perspectiva do mundo que, conseqüentemente, são responsáveis pela compreensão descentrada do mundo.

No intuito de explicar melhor o parágrafo anterior, podemos dizer que as estruturas de interação – as quais estão inerentemente guiadas por normas mediadas lingüisticamente – estão implícitas na teoria do agir comunicativo. Isso implica que qualquer empreendimento que vise a reconstrução dos estágios de interação – e este é o esforço de Habermas  pautar-se-á pelo conceito de agir comunicativo. Além disso, Habermas toma ainda as estruturas de interação, usando-as como base para esclarecer a ontogênese das perspectivas do falante e as perspectivas do mundo, pois que a compreensão descentrada do mundo se depreende da diferenciação dessas perspectivas, ou seja, é um processo desencadeado internamente pelo sujeito em seu confronto com o mundo externo.

Habermas, parte do pressuposto básico da epistemologia genética de Piaget, segundo o qual o sujeito constrói, partindo do confronto ativo com o seu mundo ambiente, um complexo de perspectivas que, por um lado, referem-se à perspectiva do observador com referência ao sistema de perspectivas do mundo, e, por outro, à perspectiva Eu-tu com referência ao sistema de perspectiva do falante. Habermas acredita ir além de Piaget e Kolhberg, por utilizar-se do desenvolvimento das estruturas de interação como fio condutor para a reconstrução desses processos. Nesse sentido, as perspectivas sócio morais de Kohlberg somente poderão tornar-se passíveis de compreensão, para quem antes tiver a compreensão descentrada de mundo, a qual se alcança mediante a diferenciação das perspectivas do falante e do mundo.

Ora, o que fez Kohlberg foi querer deduzir dos estágios da consciência moral (ontogênese) as perspectivas sócio-morais (filogênese). Habermas quer, ao contrário, mostrar que, para justificar as perspectivas sócio morais (filogênese), estas devem estar ligadas à compreensão da descentração do mundo, compreensão essa que passa pela ontogênese da perspectiva do falante.

O itinerário argumentativo que vemos Habermas seguir em Consciência Moral e Agir Comunicativo é o seguinte: (i) toma os estágios morais de Kohlberg analisando-os em paralela sintonia com as perspectivas sócio-morais sem, no entanto, inferir qualquer fundamentação, (ii) visualiza nas perspectivas sócio-morais, o descentramento da compreensão do mundo  e (iii) para esclarecer o desecentramento da compreensão do mundo irá, necessariamente, percorrer o processo de diferenciação entre as perspectivas do mundo e do falante, das quais desdobram-se os estágios de interação, já que essas perspectivas, ao se integrarem em interações, ajustam-se a uma lógica do desenvolvimento, tornando possível a fundamentação dos estágios dos juízos morais de Kohlberg. A fundamentação da lógica do desenvolvimento é, portanto, alcançada mediante a estrutura de interações em seu aplicativo para diferenciar as perspectivas do mundo e as do falante e, conseqüentemente mediante a compreensão descentrada do mundo.

Para Habermas, a compreensão descentrada do mundo vem a ser caracterizada por uma complexa estrutura de perspectivas. De um lado, refere-se às perspectivas nas quais se fundam as referências aos mundos objetivo, social e subjetivo, em suas respectivas atitudes objetivante, conforme a normas e expressiva. De outro, remete para as perspectivas inerentes à própria situação de fala, que os participantes a fim de se entenderem uns com os outros, precisam adotar. São as atitudes vinculadas aos papéis comunicacionais da primeira, segunda e terceira pessoas. Nesse aspecto, o que se procurou evidenciar é que o desenvolvimento das perspectivas sócio morais não ocorre desvinculado da compreensão descentrada de mundo.

Enfim, devemos verificar qual é o papel que ocupam as perspectivas de ação de Selman. São três as perspectivas destacadas: perspectiva subjetiva – relações baseadas na ordem subjetiva; perspectiva auto-reflexiva (2ª pessoa) – relações baseadas na reciprocidade; e perspectiva da 3ª pessoa – que se baseia numa relação mútua.

No primeiro nível de Selman não se contempla a reciprocidade na orientação das ações. No segundo nível, é possível o sujeito adotar a perspectiva da segunda pessoa, de forma a colocar-se na perspectiva de ação da outra pessoa e aceitar que esse outro também se coloque na sua perspectiva de ação. Esse entrelaçamento de papéis comunicacionais da primeira e da segunda pessoa é que viabiliza a coordenação de ações. Os planos de ação, eles próprios, são absorvidos por um contexto normativo nessa troca efetiva das perspectivas de falante pela do ouvinte e vice-versa. Isto se torna possível uma vez que, na estrutura das perspectivas entre falantes e ouvintes, Habermas afirma estar vinculada a atitude performativa, a qual garante o entendimento mútuo e a interação. E, no terceiro nível, a pessoa alça-se a um patamar mais elevado, sendo capaz de adotar a perspectiva da terceira pessoa no âmbito da interação. Significa dizer que, nesse nível, ocorre a introdução da perspectiva do observador no domínio da interação. Com isso, a interação não estabelece senão um relacionamento interpessoal neutro, de forma que a pessoa se mantém presente sem, no entanto, envolver-se, ocupando apenas uma posição de ouvinte ou de expectador. Desse modo a reciprocidade das orientações da ação adotada na perspectiva da segunda pessoa pode, neste terceiro nível, tornar-se objetualizada adquirindo um caráter sistêmico.

            Na complexa estrutura de perspectivas (falante e do mundo) está a chave para esclarecer a lógica do desenvolvimento. Três pontos é preciso considerar para entender o processo argumentativo de Habermas. (i) As perspectivas do falante e as do mundo conduzem a compreensão descentrada do mundo, mas isso só é possível se tais perspectivas forem analisadas dentro das estruturas de interação. É importante ressaltar que a perspectiva do falante vem da perspectiva Eu-Tu relacionada aos papéis comunicacionais das 1ª e 2ª pessoas, e a perspectiva do mundo vem da perspectiva do observador, relacionada à atitude objetivante da natureza externa. (ii) Os sistemas de perspectivas do falante (as do participante e as do mundo) complementam-se no sentido de formarem um sistema completo. No nível pré-convencional, conta-se apenas com a perspectiva Eu-Tu. Com a introdução da perspectiva do observador (dimensão da terceira pessoa – ele), consolida-se o estágio convencional, passando-se a contar, nesse, com a possibilidade de realização de ações estratégicas (mundo objetivo e social) para à formação de um sistema de normas (mundo social) – pois aqui, nesse nível, os agentes passam a dispor de um conhecimento completo do sistema de normas,  permitindo derivar dois novos tipos de ação: o agir estratégico e a interação guiada por normas. (iii) Um terceiro ponto a considerar refere-se ao fato de que a introdução da perspectiva do observador no domínio da interação consolida a constituição do mundo social. Portanto, a diferencição que ocorre entre as perspectivas do participante e as do mundo levam à compreensão descentrada do mundo (diferenciação entre mundo e mundo da vida). Esta diferenciação, segundo afirma Habermas, é realizada “na ontogênese da capacidade de falar e agir”.(HABERMAS, 1989, p. 169).

            O aspecto significativo que resultou da análise das perspectivas de ação, segundo Selman, foi a abertura dada para se enxergar, a partir da diferenciação da perspectiva do falante em seu respectivo desdobramento nas perspectivas do participante e do observador, o prolongamento da interação para o nível convencional. Habermas sendo enfático em justificar a lógica do desenvolvimento, continua perseguindo em seu itinerário argumentativo dois objetivos: (i) explicar o papel que a reciprocidade, inerente à estrutura da interação, desempenha no agir para, num segundo momento, (ii) apontar como se desdobra, no nível convencional, o agir estratégico e o agir orientado para o entendimento.

            O ponto de partida é a analise dos tipos específicos de ações que se desenrolam no nível pré-convencional., abordadas em quatro grupos: (i) e (ii) ação governada pela autoridade sob o ponto de vista (i) cooperativo e sob o ponto de vista (ii) conflitivo; (iii) e (iv) ação simétrica governada por interesses sob o ponto de vista (iii) cooperativo e sob o ponto de vista (iv) conflitivo. São modelos de ações que estão dispostos numa polaridade entre autoridade e imposições imperativas; e interesses privados e necessidades subjetivas.

            Habermas buscará entre essas ações pré-convencionais aquele tipo de ação em que é passível de aplicar o engano para, a partir daí, indicar como se estrutura a ação estratégica. O que se pretende, em síntese, é não só indicar o tipo de ação pré-convencional que permite, no seio da sua interação, o engano, mas também aproximá-lo ao modelo de ação estratégica do nível convencional, verificando, ao mesmo tempo, como se dá a transformação do primeiro no segundo. As ações que visam preencher estas condições devem atender o seguinte reclamo: “A opção de influenciar por meio do logro o comportamento de Alter (outro) só existe sob a condição de que Ego (a) interprete a relação social como simétrica e (b) interprete a situação da ação do ponto de vista das necessidades conflitantes. Esse comportamento concorrencial exige a atuação recíproca do Ego e de Alter um sobre o outro”. (HABERMAS, 1989, p.181).

 Pois, num comportamento competitivo em que as relações de reciprocidade da primeira e segunda pessoa são simétricas, e considerando que haja um conflito entre ambas governadas por interesses próprios, a relação de reciprocidade será objetivada tanto pela primeira quanto pela segunda pessoa, de forma a adotar a perspectiva de observador e considerar tal relação numa ótica de sistema. Significa dizer que a adoção do terceiro nível de Selman – a adoção da perspectiva do observador na interação – gera em cada participante o reconhecimento da estrutura do sistema do qual estão compartilhando para a realização da interação. O que ocorre, nesse sentido, é a inter-relação das perspectivas do participante e do observador e, justamente nesta inter-relação, Habermas sinaliza a passagem da ação pré-convencional para a ação convencional.

            Sempre tendo em nosso horizonte os níveis de ação de Selman, podemos perceber que, no segundo nível caracterizado pela adoção da perspectiva da segunda pessoa (Eu-Tu), é possível estabelecer uma interação voltada para o entendimento mútuo, uma vez que os agentes estão implicados na perspectiva do participante. No terceiro nível, porém, com a introdução da perspectiva da terceira pessoa, os agentes, percebendo que podem alterar a perspectiva de participante pela de observador, objetivam a interação criando a possibilidade de um agir estratégico. O que faz Habermas é mostrar que a ação baseada na competição se transformou em ação estratégica no nível convencional, o que significa dizer que a ação estratégica não é mais orientada em razão das necessidades, mas antes, pela consciência das regras do jogo em que se configurou o sistema na qual as ações atuam.

            Resta-nos agora explicar como é possível coexistir no nível convencional o modelo de ação orientada para o entendimento mútuo. Para isso é preciso retornar ao nível pré-convencional e analisar os modelos de ações que se pautam pela cooperação. O objetivo é verificar como estas ações podem alcançar a orientação para o entendimento mútuo com a passagem para o estágio convencional. Para a manutenção da força da autoridade ou de interesses próprios no nível convencional, Habermas aponta três dificuldades: (i) a força da autoridade não é mais suficiente para suprir a coordenação das ações no plano convencional das interações, porque estas relações foram objetivadas com a introdução da perspectiva do observador; (ii) a justificação da ação em vista das próprias necessidades também não se mantém, porque as ações passaram a ser orientadas de maneira estratégica, justamente pela consciência das regras do jogo que permitiu configurar o sistema no qual as ações atuam; (iii) e a terceira, a que corresponde à polaridade entre a atitude orientada para o sucesso e a atitude orientada para o entendimento.

            No desenvolvimento da sua argumentação, Habermas afirma que o mecanismo da ação orientada ao entendimento mútuo não deve estar na dependência, seja da autoridade, seja dos interesses próprios de cada indivíduo. A argumentação de Habermas, nesse sentido, consiste basicamente em mostrar que o nível convencional, para contemplar um agir não estratégico, depende de um conceito de arbítrio supra-pessoal. Notadamente, fica manifesto que o arbítrio supra-pessoal é o único conceito capaz de diluir em si a polaridade entre autoridade (ordenamento heterônomo) e interesses (ordenamento subjetivo). Cabe, portanto, indagar o procedimento que leva a constituição desse conceito supra-pessoal no nível convencional.

            Para isso é preciso lembrar que a terceira perspectiva de ação segundo, Selman, possibilitou com a introdução da perspectiva do observador na interação, a criação de um relacionamento interpessoal neutro. É certo que Habermas extraiu daí o esclarecimento do agir estratégico, porém, é dessa mesma raiz que explicará o conceito de arbítrio supra-pessoal, o qual permitirá um relacionamento interpessoal e neutro e a possibilidade de criação de normas. Assim sendo, o nível convencional é também mantenedor – além de interações estratégicas – de um mundo social que contempla normas sociais nas quais está implícita uma autoridade supra-pessoal que regula relações inter-pessoais de maneira legítima. Aspecto bastante significativo é que, nesse plano, a autoridade está desligada da referência de pessoas particulares e diluída num caráter supra-pessoal, de forma a remeter a referência de autoridades encarnadas em pessoas ou contextos particulares a “conceitos normativos da obrigação moral, da legitimidade das regras, da validade deontológica de ordens autorizadas”.(HABERMAS, 1989, p: 187-188).

            Com isso Habermas procura demonstrar como ocorre a transformação das formas de reciprocidade no âmbito das relações sociais. Ao mesmo tempo que viabilizou assegurar a sustentabilidade de uma forma simétrica da reciprocidade que, circunscrita à ordem imperativa de uma generalização social, viabilizou, aos membros de um grupo social, o direito de esperar uns dos outros, situações de ações específicas que preencham as expectativas generalizadas do comportamento. Em linhas gerais, Habermas está alinhavando as respectivas mudanças das formas de reciprocidade que ocorrem em cada estágio da interação e, ao mesmo tempo, sinalizando que o avanço das formas de reciprocidade, embutidas em níveis de interações sociais cada vez mais abstratos e universais, consolida o núcleo da consciência moral.(HABERMAS, 1989, p. 204).

            No intuito de correlacionar os estágios da interação com as perspectivas de ação de Selman, Habermas obteve, a partir da reciprocidade das perspectivas de ação dos participantes – segundo nível de Selman – a caracterização do estágio de interação pré-convencional.  Já o estágio de interação convencional se consolidou pela formação do sistema de perspectivas de ação, a partir da inter-relação da perspectiva do observador com a perspectiva do participante. A introdução da perspectiva do observador no âmbito da interação permitiu a viabilização de aspectos significativos: (i) a complementação do sistema de perspectivas do falante referente aos papéis comunicacionais da primeira, segunda e terceira pessoas, formando um novo nível para a organização e consecução do diálogo; (ii) a formação de uma nova estrutura de perspectivas, que permitiu a transformação do comportamento de conflito guiado por interesses em agir estratégico; (iii) o auxílio dessa mesma estrutura de perspectivas para a construção dos conceitos sócio-cognitivos que estruturam o agir regulado por normas; (iv) a formação de uma atitude de conformidade a normas; (v) e a partir desses pontos destacados é possível formar os pré-requisitos estruturais para um agir comunicativo, em que os planos de ação dos participantes da interação possam ser coordenados pelo mecanismo de entendimento mútuo lingüístico.

            Em suma, Habermas sinalizou o caminho que conduz ao conceito supra-pessoal – imperativo de nível superior –, conceito este que é desligado de pessoas particulares e exprime uma autoridade intersubjetiva da vontade coletiva, a qual permite relações simétricas. Porém há um preço a ser pago. E esse preço é a polarização entre o agir regulado por normas de um lado, e o agir estratégico de outro. Essa cisão, na visão de Habermas, é superada no terceiro estágio da interação, isto é, no discurso ou nível pós-convencional.

            A preocupação de Habermas, a partir desse contexto argumentativo, diz respeito à necessidade de introduzir o discurso como terceiro estágio da interação, o que se daria na consecução e realização do nível pós-convencional. Suas considerações para justificar este terceiro estágio referem-se ao aumento de complexidade da estrutura de perspectivas, pois no nível convencional observou-se apenas a conjugação e a coordenação das perspectivas dos participantes com a do observador. Já no caso do nível pós-convencional ou estágio do discurso, estarão sendo conjugados dois sistemas de perspectivas, quais sejam: as perspectivas do falante e as do mundo – objetivo, social e subjetivo. Desse modo, Habermas terá que dar conta de mostrar como é possível, no terceiro estágio da interação, a coordenação das perspectivas (do falante e do mundo), e também a integração dos tipos de interação (estratégica e orientada ao entendimento).

Todo o esforço argumentativo de Habermas em vista da reconstrução dos estágios de interação seguiu, como vimos, as perspectivas de ação segundo Selman. Para alcançar o terceiro estágio de interação, Habermas se apóia no agir comunicativo e, a partir deste, aponta como prolongamento o nível do discurso. É importante notar aqui, o papel que a ética do discurso desempenha no sentido de complementar a teoria de Kohlberg, quando permite avançar para a ação comunicativa, trazendo elementos que possibilitem a fundamentação da lógica do desenvolvimento. Essa incursão pela teoria da ação comunicativa se faz necessária porque Selman, em seus respectivos estágios de adoção de perspectivas, não contemplou o nível pós-convencional, e o fio condutor que forneceu a Habermas para reconstruir os estágios da interação somente lhe permitiu chegar até o nível convencional.

Portanto, a consolidação do discurso tende a ser analisado dentro da perspectiva da evolução da consciência moral, que se desenvolve no plano da ontogênese, acrescida de esquemas cognitivos que se formaram filogeneticamente com a evolução das imagens do mundo e dos sistemas morais.

Referências bibliográficas:

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. Tradução:  Carlos Nelson Coutinho. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

HABERMAS, Jürgen. Folha de São Paulo. “Habermas: entrevista exclusiva”. 30 de abril de 1995. Caderno Mais. pp: 5-4 a 5-10.